Sunday, November 19, 2006

A musa dos pés descalços


foto: yves noir

Passou por mim como um arrepio, mas a reconheci no imediato. O ranger interno dos ossos e um presságio em forma de calafrio me diziam: é ela. Os indícios na relva verde estavam lá, apontando para múltiplas direções, todas elas, a mesma. Tudo confirmava sua fugidia presença, mas foram as marcas dos pés descalços que assinaram seu nome na grama. Voltara sabe-se lá de que abismo. O jeito escorregadio, como se não quisesse estar ali. Era o riso de sempre, a mesma alvura de pele, a sina romântica de infortúnios e naufrágios. Musa de sonhos irrealizáveis, tinha o corpo transparente, desenhado por caminhos azuis de veias, cabelos claros ao vento. Esquálida, pálida, lânguida. O sexo, mata fechada, escuro contraste com a pele de leite, guardião de segredos abissais. Mais ilusão do que carne. O coração gelado, silencioso, e a maldade pura das crianças. Mas a expressão da sua alma eram os pés. Ninguém nunca os vira calçados. Estavam sempre deixando digitais em formas de pegadas, construindo constantemente seus labirintos. Fez do andar descalço sua marca e, em cada passo, os vestígios de sua luta para manter a lucidez dos sentidos, o esforço para escapar aos desvarios que abriram fendas em seu peito.

Em outra vida, me perdera com ela. Caminhei ao seu lado, buscando desvendar, ofuscado por um fascínio irracional, a alma desfraldada, o espírito indomável, a meninice que se apegara à pele, o sorriso travesso enquanto ateava fogo ao mundo, em suas revoluções, revoltas e conjurações. Mergulhei em seu universo pela densidade de sua floresta, nunca inteiramente aberta para mim. Era preciso sempre lhe tomar de assalto o reduto, o ventre plano, o púbis tarantular e fincar ali a minha bandeira. Só assim, quando o corpo já não lhe pertencia mais, me entregava seu tesouro isenta da própria volúpia. Forcei-me adentro de sua persona, de seus humores, de seus músculos e deixei em suas funduras os fios poucos de sanidade que me constituíam. Enlouqueci feliz no esquecimento daqueles dias, que se alternavam entre os mais felizes e os mais ferozes da minha vida. Fui picado mil vezes por seu ferrão oculto, ingeri seu veneno mais letal, mas sobrevivi ao mergulho, salvo por meu apego à terra, ao chão firme, à luz quente do sol.

No caminho de volta reencontrei cacos preciosos do que fora antes de ter enquadrado seus olhos no foco impossível. Reconstituí-me protegendo os pedaços que me sobraram. Era agora feito de restos, num mundo sem quimeras ou fantasias. Apenas a densidade crua das coisas e dos seres; a percepção, resignada e plácida, do ciclo da vida. Foi preciso tempo para ver o encantamento dessa outra alegria possível, que, sem fogos de artifícios ou canto de sereias, ardia plena na intensidade do real.

E agora, ela me assombrava novamente, materializando-se ao meu lado. Os pés sempre desnudos e, nos olhos, a velha história, o mesmo engano. Mas, na distância, aprendera. Sabia inclusive de todos os novos vocábulos que pronunciei desde o nosso último abraço. Estudara atentamente meus percalços e vinha preparada para me reconquistar; sua trama, por não ser trama, era das mais poderosas. Mas as cicatrizes ainda me doíam fundo e me mantive enraizado. Amarrei-me, como Ulisses, ao real. Permiti que ela chovesse, derramando-se sobre mim, e esperei que estiasse, no sono calmo e escuro de seus abismos, único lugar onde seu espírito aquietava-se. Mas, enquanto dormia, saí vasculhando o mundo ao meu redor, para depois voltar e afogá-la sob uma montanha de calçados. Estava curado e podia agora deixar meus próprios passos na relva.

2 Comments:

Blogger Jonas Prochownik said...

Estou achando tudo o máximo !
Textos, conceito e ilustrações maravilhosas.

1:31 PM  
Blogger ipaco said...

Valeu, Kristal! Fico muito feliz.

2:31 PM  

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