Sunday, May 18, 2008

Mariposas no Projeto Mapa



A participação no evento do Projeto Mapa foi uma experiência das mais instrutivas para mim, apesar do torturante nervosismo que a coisa toda provocou. Subir ao palco e ler fragmentos de um texto em prosa de teor intimista me parecia um exercício fadado ao infortúnio. Some-se a isso minha dicção balbuciante, a leitura no palco com pouca luz e outros fantasmas que rondaram todo o processo até a passagem de som.

Mas, ao contrário das projeções mais sombrias, o evento foi ótimo e a na hora do pega-pra-capar, uma estranha calma me invadiu e li com ritmo, sem tropeços e até mesmo com alguma intensidade. Passado o susto, a sensação foi boa, sobretudo porque não deixou de ser uma espécie de teste em relação à forma como os fragmentos das Mariposas chegaria aos ouvidos do público. O texto íntimo finalmente saiu do ninho e foi reapropriado pela audiência, que fez dele outros sentidos.

Também foi um aprendizado. Ler prosa exige uma mexida no texto, para deixá-lo, digamos, mais verbalizável. É algo que o Alexei Bueno disse sobre impropriedade da poesia como arte cênica (do que discordo, embora concorde com muitas ponderações do poeta). A poesia se presta mais às declamações. Os versos, normalmente, já demarcam o ritmo da leitura em voz alta e, dependendo das imagens que cria, facilita o lado cênico da apresentação. O Chacal, por exemplo, tem um jeito de mover o corpo, soltando as palavras das entranhas. Ele se retorce e cospe literalmente o verbo.

O texto de prosa é uma outra história. As imagens são desconexas em termos de ritmo, rima e imagens. O texto lido em voz alta, declamado com alguma presença cênica, performática, impõe certas condições para manter os ouvidos da audiência ligados. O texto de prosa permite muito facilmente que o ouvinte se disperse, converse, peça um chope e perca o fio da meada. Mas, no caso do Projeto Mapa, há um grande apoio da música, que não entra como fundo, mas como co-protagonista. A leitura funciona como um solo instrumental verbalizado. Em vez da guitarra ou do sax, entra o texto, com o tema da música ao fundo. Isso tudo dá um relevo ao texto e, aí, até mesmo a prosa cai bem.

No meu caso, a leitura dos fragmentos das Mariposas, uma coisa intimista com certas tensões sensuais, casou muito bem com o tema do Wayne Shorter Footprints, uma balada valseada das melhores. A leitura entrou como mais um instrumento solando. Fizemos o tema duas vezes, eu li a primeira parte, o guitarrista solou, eu li a segunda e a banda fez o tema mais duas vezes para fechar. No fim, fiquei com vontade de fazer mais, exatamente como o Marcelo Magdaleno, idealizador do projeto, previu.

Flávio Izhaki também leu prosa e com um desafio maior, porque trouxe fragmentos de um romance, ou seja partes de um enredo maior, ao passo que minhas Mariposas se prestam mais à fragmentação, já que são memórias recortadas. Porém, Flávio atravessou bem o incêndio. Pensando retrospectivamente, acho que o Marcelo Moutinho foi o que melhor costurou essa integração de prosa e música.

O Otto fechou a noite, colocando o evento nas alturas. Inspirado pelas leituras anteriores, leu pela primeira vez alguns poemas seus de boa cepa.

Tudo foi gravado em vídeo e não sei como saiu e nem quando ficará disponível. Maiores informações sobre o evento podem ser encontradas no site do Projeto Mapa (veja o link ao lado).

Além do show, foi ótimo reencontrar, após mais de 20 anos, Carmen Molinaro, uma amiga do século XII.



Abaixo, os dois fragmentos das Mariposas, exatamente como foram lidos:

Tema do Footprints, duas vezes e em seguida o primeiro fragmento:

Ela tem curvas. Todas elas têm. Mas sua textura muda e traz odores sutis, suores suaves, que a constragem e me embalam. Do centro de suas pernas saem mariposas. Sua floresta esconde um sol de úmidos raios. Muitas coisas acontecem ali. Misteriosas, emaranhadas, espessas, escorregadias. Exploro bem de perto seu território, com olhos de míope, farejando, tateando com todos os sentidos. Durante séculos, atravesso seus vales, mergulho em seu lago e me enrolo em sua pele transparente. Sorvo seus líquidos, mordo sua carne, bebo seu sangue e deixo sinais nas curvas de suas coxas. Cravo minha marca com caninos afiados. Depois, me cubro com seus cabelos e me deixo ficar, eterno vigilante de minha conquista. Está sempre de passagem, pronta para fugir. Mas às vezes se distrai e me fecunda de alegrias espantosas, até que o amanhecer a devolva aos abismos.

Solo de guitarra e o segundo texto:

Era frágil como um passarinho. Olhar ciscando, impreciso, procurando saidas. Respirava sua sina de ninfa e escondia o medo na languidez dos gestos, nas palavras de obscenidade óbvia. Exalava um perfume barato. Os cabelos, duros de tanta tinta, eram cores improváveis, tom sobre tom de muitas camadas, como as histórias de seu dia-a-dia, que se sucediam rapidamente. Mas eu a via sempre menina. Perdido num turbilhão de dúvidas, não sabia se a devorava ou a salvava de uma vez por todas. Era ela quem decidia, afinal, quando me despia a alma e , assustada como um passarinho, me engolia.

2 Comments:

Blogger Canto da Boca said...

Paulo, nao quero ser chata, mas aqui: "Ela tem cruvas." eh assim mesmo, ou foi erro de digitacao? "Cruvas" ou curvas?

5:54 AM  
Blogger ipaco said...

Putz, errei. Dedos nervosos no teclado improvisado. Vou corrigir. Obrigado pelo toque!

5:56 AM  

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