Wednesday, January 02, 2008

Maravilhosamente insuportável



Acho que foi na Idade Média, já não me lembro bem. Naquela época, eu e ela estávamos sempre juntos, embora houvesse muitas galáxias entre nós. Eu, como sempre, perdidamente apaixonado. Ela, interessada nas amigas. No entanto, talvez até pelos percalços que sua ousadia afetiva lhe impunha numa sociedade pouco afeita a esse tipo de conjunções carnais, sempre procurava seduzir a nós, pobres coitados do sexo oposto. Éramos o alimento perfeito de suas incertezas. Mas não nos oferecia nada além de uma promessa do que poderia vir a ser. Sua arte era nos fazer crer que se entregaria.

Atributos não lhe faltavam para desempenhar com maestria o rito sedutor. Além da beleza misteriosamente mediterrânea, que marcava seu rosto com expressões singulares, possuía curvas inquestionáveis. Nunca usava sutiã, justamente para ressaltar o desdém que nutria pelos princípios da Lei da Gravidade. E eu me via completamente hipnotizado, quando entrava na órbita de seu abraço. Ela era sempre um quase. E isso me enlouquecia. Sentia-me completamente enredado em sua teia.



Um dia, pura conspiração cósmica, estávamos no meu quarto de espírito adolescente discutindo um trabalho que realizávamos juntos. Curiosa, ela vasculhou a estante de livros e encontrou alguns catecismos de Zéfiro, aqueles quadrinhos eróticos mimeografados e mal desenhados, vendidos clandestinamente nas bancas do Rio, naquele século XVI. Aliás, é preciso fazer justiça e dizer que Zéfiro fez parte da formação sexual de várias gerações, inclusive a minha, antes que o universo pornográfico se transformasse em um mercado lucrativo e padronizado, com suas fotos ginecológicas e falta de imaginação. Nas histórias de Zéfiro, ao contrário, o erotismo estava sobretudo nas fantasias, repletas das safadezas e perversões que alimentam o universo erótico do brasileiro.



Pega de surpresa, minha amiga sentou-se na cama, profundamente entretida naquelas tramas picantes. Ajeitei-me ao seu lado, deveras surpreso pela maneira franca como ela demonstrava sua excitação e alegria com aquelas revistinhas de sacanagem, e fui comentando as histórias, que já conhecia de cor, o que me permitia ressaltar detalhes sórdidos que só aumentavam o nosso calor. E deu-se a magia. Ou terá sido bruxaria? Não lembro mais exatamente como começou, mas recordo-me bem de sua camiseta levantada e especialmente da textura daqueles seios protuberantes, prova inquestionável da existência divina. Só por tê-los beijado e tocado, já realizara parte de um grande sonho de felicidade. Já quase poderia morrer em paz.



O que tornava aquela sensação insuportavelmente prazerosa era a sua total improbabilidade, o que confirma o fato de que o orgasmo é, antes de tudo, uma construção simbólica. Minhas sensações eram aguçadas pela emoção de ter-me consciente de que este momento fugidio, em que minha língua e seu mamilo esquerdo se entregavam um ao outro, nunca mais se repetiria. Hoje, certamente algum cientista americano em busca do Nobel dirá que se trata de um estímulo no lóbulo frontal ou talvez localizado em algum ponto do cerebelo, não sei bem. Prefiro o bom e velho Freud, ou, antes ainda, o perverso Zéfiro, a quem tenho profunda dívida de gratidão.



Saltei sobre minha amiga como um tigre que espreita a gazela bebendo água distraída na floresta. Sabia que qualquer gesto precipitado ou vagaroso demais quebraria o sortilégio. Avançava com ternura e firmeza. Ela nunca usara saia, portanto em meio àquela sofreguidão intensa, procurei desajeitadamente abrir os seis botões de seu jeans que me separavam do paraíso. Nossos corpos pegavam fogo. Ela arfava e eu era sacudido por sismos internos de magnitude 9 na escala Richter. Eu era um vulcão em plena atividade. Minhas pernas tremiam como varas de bambu.



Ela, afinal, se entregara. Mas, quando faltavam apenas dois botões para a felicidade completa, uma batida na porta do quarto devolveu-lhe num átimo a consciência cristalina de que algo impróprio à nua natureza ocorria e a tal perversão não poderia sucumbir sem pôr em risco a intrincada estrutura de seu psiquismo. Toda sua alma desabaria e não haveria mais volta. Em outras palavras, foi um balde de água fria. Tivemos que nos recompor rapidamente e, ao abrir a porta, dei com minha mãe que fizera duas limonadas suíças para amenizar o calor. “Fiz um suquinho pra vocês”, disse ela sorridente e maternal. E foi ali, naquele instante, que me inteirei da necessidade de morar sozinho.



Quanto a minha amiga, nunca mais abriu a guarda.
mariposas: January 2008