Sunday, May 25, 2008

Oceano



Derramou-se a alça do vestido
e à esquerda emergiu o alvo ombro,
presságio de chuva em sua boca.
Os dedos escorreram o ângulo perfeito
e precipitei-me abismo adentro
para sempre afogado em você.
Mas depois estiei um sol de lucidez
e secou-se o que de seu era orvalho.
Escoei quase todo o oceano.
Hoje leva-me, onda sem destino,
uma brisa de saudade
à deriva.

Tuesday, May 20, 2008

Náufraga



A última vez que te vi
O verbo ardeu, lamentoso
Trazias pedras nas palavras
Eras o desencontro de sempre
Vomitando as dores mesmas
Com outras sombrias cores.
Mas agora, fui eu quem faltou
E a mágica desaconteceu
Teu encantamento não mais
Escondia os olhos mortos
Foi fitar a íris opaca, inerte
E saber que, desde o início,
O fim viera antes do começo.
Desfez-se o sortilégio e te vi
Na luz dos teus naufrágios
Que, agora, eram só teus.
E o beijo que tanto negaras
Hoje já não alcanças mais.

Sunday, May 18, 2008

Mariposas no Projeto Mapa



A participação no evento do Projeto Mapa foi uma experiência das mais instrutivas para mim, apesar do torturante nervosismo que a coisa toda provocou. Subir ao palco e ler fragmentos de um texto em prosa de teor intimista me parecia um exercício fadado ao infortúnio. Some-se a isso minha dicção balbuciante, a leitura no palco com pouca luz e outros fantasmas que rondaram todo o processo até a passagem de som.

Mas, ao contrário das projeções mais sombrias, o evento foi ótimo e a na hora do pega-pra-capar, uma estranha calma me invadiu e li com ritmo, sem tropeços e até mesmo com alguma intensidade. Passado o susto, a sensação foi boa, sobretudo porque não deixou de ser uma espécie de teste em relação à forma como os fragmentos das Mariposas chegaria aos ouvidos do público. O texto íntimo finalmente saiu do ninho e foi reapropriado pela audiência, que fez dele outros sentidos.

Também foi um aprendizado. Ler prosa exige uma mexida no texto, para deixá-lo, digamos, mais verbalizável. É algo que o Alexei Bueno disse sobre impropriedade da poesia como arte cênica (do que discordo, embora concorde com muitas ponderações do poeta). A poesia se presta mais às declamações. Os versos, normalmente, já demarcam o ritmo da leitura em voz alta e, dependendo das imagens que cria, facilita o lado cênico da apresentação. O Chacal, por exemplo, tem um jeito de mover o corpo, soltando as palavras das entranhas. Ele se retorce e cospe literalmente o verbo.

O texto de prosa é uma outra história. As imagens são desconexas em termos de ritmo, rima e imagens. O texto lido em voz alta, declamado com alguma presença cênica, performática, impõe certas condições para manter os ouvidos da audiência ligados. O texto de prosa permite muito facilmente que o ouvinte se disperse, converse, peça um chope e perca o fio da meada. Mas, no caso do Projeto Mapa, há um grande apoio da música, que não entra como fundo, mas como co-protagonista. A leitura funciona como um solo instrumental verbalizado. Em vez da guitarra ou do sax, entra o texto, com o tema da música ao fundo. Isso tudo dá um relevo ao texto e, aí, até mesmo a prosa cai bem.

No meu caso, a leitura dos fragmentos das Mariposas, uma coisa intimista com certas tensões sensuais, casou muito bem com o tema do Wayne Shorter Footprints, uma balada valseada das melhores. A leitura entrou como mais um instrumento solando. Fizemos o tema duas vezes, eu li a primeira parte, o guitarrista solou, eu li a segunda e a banda fez o tema mais duas vezes para fechar. No fim, fiquei com vontade de fazer mais, exatamente como o Marcelo Magdaleno, idealizador do projeto, previu.

Flávio Izhaki também leu prosa e com um desafio maior, porque trouxe fragmentos de um romance, ou seja partes de um enredo maior, ao passo que minhas Mariposas se prestam mais à fragmentação, já que são memórias recortadas. Porém, Flávio atravessou bem o incêndio. Pensando retrospectivamente, acho que o Marcelo Moutinho foi o que melhor costurou essa integração de prosa e música.

O Otto fechou a noite, colocando o evento nas alturas. Inspirado pelas leituras anteriores, leu pela primeira vez alguns poemas seus de boa cepa.

Tudo foi gravado em vídeo e não sei como saiu e nem quando ficará disponível. Maiores informações sobre o evento podem ser encontradas no site do Projeto Mapa (veja o link ao lado).

Além do show, foi ótimo reencontrar, após mais de 20 anos, Carmen Molinaro, uma amiga do século XII.



Abaixo, os dois fragmentos das Mariposas, exatamente como foram lidos:

Tema do Footprints, duas vezes e em seguida o primeiro fragmento:

Ela tem curvas. Todas elas têm. Mas sua textura muda e traz odores sutis, suores suaves, que a constragem e me embalam. Do centro de suas pernas saem mariposas. Sua floresta esconde um sol de úmidos raios. Muitas coisas acontecem ali. Misteriosas, emaranhadas, espessas, escorregadias. Exploro bem de perto seu território, com olhos de míope, farejando, tateando com todos os sentidos. Durante séculos, atravesso seus vales, mergulho em seu lago e me enrolo em sua pele transparente. Sorvo seus líquidos, mordo sua carne, bebo seu sangue e deixo sinais nas curvas de suas coxas. Cravo minha marca com caninos afiados. Depois, me cubro com seus cabelos e me deixo ficar, eterno vigilante de minha conquista. Está sempre de passagem, pronta para fugir. Mas às vezes se distrai e me fecunda de alegrias espantosas, até que o amanhecer a devolva aos abismos.

Solo de guitarra e o segundo texto:

Era frágil como um passarinho. Olhar ciscando, impreciso, procurando saidas. Respirava sua sina de ninfa e escondia o medo na languidez dos gestos, nas palavras de obscenidade óbvia. Exalava um perfume barato. Os cabelos, duros de tanta tinta, eram cores improváveis, tom sobre tom de muitas camadas, como as histórias de seu dia-a-dia, que se sucediam rapidamente. Mas eu a via sempre menina. Perdido num turbilhão de dúvidas, não sabia se a devorava ou a salvava de uma vez por todas. Era ela quem decidia, afinal, quando me despia a alma e , assustada como um passarinho, me engolia.

Sunday, May 11, 2008

Todo



Seu corpo
Solto assim no espaço
Sem o calor do sangue,
Veias e ossos

Imaterial, imolecular

Vestígio apenas da história
Que ficou condensada
Na memória de quem
Sobreviveu no tempo.

Alma ampla
Espalhada agora no vazio
No algo mais

Incompreensível, integral

Bem além de
Qualquer palavra
Bem mais que
Qualquer idéia.

Rio, 11 de maio de 2008.
(para Manduka)

Tuesday, May 06, 2008

Tato



Insinua-se sob os panos
Minha mão adentro
O vinho nos ajuda
Nos encobre o silêncio

Forço a elástica fibra
E, com os dedos cegos,
Na ponta, a mata sinto
Teu pudor, enfim, venço

Estendo meus domínios
Rapto, assim, a rainha
O calor orvalha o gesto
Para sempre me abismo

E antes que aflore
Da flora a vergonha
E o medo detenha o pulso
Tateio, leve, o lago

Sem ar, suplicas um ai
Que não diz sim ou não
Mas, no fim, te abres
Para meu mergulho

E quando penso que vou
Sou eu quem preso vira
Abres os olhos em mim
E, faminta, me engoles

Rio, 25 de abril de 2008.

Fama



(para Manduka)

A morte prematura
Endeusa o tipo.
E como saíste cedo
Esquecido, maldito
Tens tudo para
Dar luz ao mito.

Mas uma fama,
Que assim se deita
Desarruma a cama
Atrasa a colheita.
Morte e saudade
Arrebatam o homem
Santificam o nome.

Porém, és mais
Que páginas, jornais
Luz que acende
Sol que arde.
Nunca dependerás
De alarde.


Rio, 26 de abril de 2008.

Sunday, May 04, 2008

Plúmbeo



Tens o coração romântico e puro
Evocas o passado em duro pranto
Saudade do que não fostes
Lírica voz que lamenta amores
Rumor de sonhos incompletos

Mas quando de ti acerca
De carne e osso verdadeiro
O beijo que se rouba à lua
Nua, te escondes assustada
E o peito plúmbeo vira gelo
Rubor de vergonhas indizíveis

Rio, 25 de abril de 2008.

Zás



Ao girar, presto,
Sem querer
O gesto flagrei
Vi que, distraída,
Me espiava.
Foi um segundo,
um zás no mundo,
Eternidade.
Antes que vestisse a pose
E, envergonhada,
Guardasse os olhos
Voltasse aos seus.
Desfeito o ar
Descompreendi a vida.
Mas, na multidão,
Seguimos cúmplices
Do breve desvario,
Testemunhas do frio
Que queimou o ventre.

Rio, 26 de abril de 2008
(entre poetas)
mariposas: May 2008