Sunday, December 24, 2006

Ciclo



Com preguiça, enrolo os dedos
nos cachinhos dos teus pelos
e deixo a tarde me atravessar.
No suor de nosso abraço
me deito ao sonho e me levas
no sortilégio de teu sorriso.
Chega o escuro e, no calor,
apuro, com cuidado, os sentidos,
atento ao tremor de tua pele.
Noite adentro, plena madrugada,
escorro no fundo do teu ventre,
brasa acesa do desejo.
E quando o dia, afinal, explode
num verão de cores quentes
eu, com ele, renasço suave
de morte ardente em teus braços.


Rio, dezembro de 2006

Friday, December 22, 2006

Mariposas (fragmento)



Pensei que fossem seus olhos. Mas antes os gestos, ou mais antes ainda um jeito de estar ali, comigo, no mundo. Tinha uma risada que calava as histéricas. Sua loucura era assim: uma doçura pronta a desatar temporais. Quase sempre furacões enfurecidos. Como suas explosões, ela era um a-qualquer-momento, um prestes-a-acontecer. Agarrou-se a mim com unhas e dentes, num salto de tigresa, e extraiu todas as minhas seivas. Amava-me desesperadamente, a um triz de me matar. Em seus delírios de perdas, adormecia comigo com uma mão em meus cabelos e outra em um punhal. Era para que não fugisse, me avisava. Nos desencontrávamos o tempo todo e era um deus-nos-acuda. Mas nos dias em que serenava, éramos felizes sangue e carne. Não tinha a sutileza das mariposas, era toda felina. Em vez do bater de asas frenético, uma lânguida preguiça, quase invertebrada, pela qual o tempo escorria perdido. Não registrava as cores da mesma forma e era preciso ser um leão para estar com ela e sobreviver. Era louca mas não era de se atirar ao mar. Sua demência era afiada, guilhotina a decepar cabeças. Preferia os surtos de fúria. Trovoava, relampejava e depois estiava. Quieta, adormecia. Sua energia era inesgotável e era preciso dobrá-la, vira-la, agarrá-la em sua entrega para que não destruísse tudo ao redor quando brincávamos de amor. Um dia simplesmente se cansou de mim e me poupou. Hoje, quando os trovões ecoam no horizonte, a percebo imóvel na floresta, onça à espreita, faminta.

Sunday, December 17, 2006

Chuva



Chove, chove, chove
torrencialmente o dia.
Meu barco segue à deriva
no abismo da memória.
Nas profundas encontro
da tristeza a cara cinza.
Ela tem os teus olhos,
minha menina encantada:
o mesmo brilho opaco
que só na distância noto.

A tua voz lamentosa,
espelho do que não fui,
ainda ressoa à cabeça.
E meus ossos, aos poucos,
soltam-se das carnes,
desapego-me de meu corpo
à espera, longa espera,
de que a morte me espalhe,
em plâncton transformado,
no espelho desse lago.

Rio, 12 de novembro de 2006

Saturday, December 09, 2006

Fera


Manipulação sobre foto de Yves Noir


Tem dias em que, cervejado e destemido,
atravesso as brumas que camuflam,
sob as estrelas, a cidade de monóxido.
E, embora suas sombras me protejam,
nesses momentos de sangue e álcool
me exponho ao olhar selvagem da felina
que me espreita de becos e esquinas.
Consciente da precisão de seu assalto
deixo o vento me delatar a seu olfato.
Espero seu ataque de unhas e dentes,
que me engula com todas as suas bocas,
que me traga morte violenta e ardente
e me transforme em cinzas de um instante,
mas que me deixe intacta a idéia de coração.


Rio, outubro de 2005

Thursday, December 07, 2006

Caixinha de sonhos



Te evito na razão,
porém a idéia do
interdito é em vão.
Todo meu esforço
para conter pulsões
é o que, no fim, abre
de uma vez por todas
a caixinha de sonhos.
Indomáveis, partem
para um outro azul
do querer profundo.
E te descubro ali,
lânguida ferida
no ventre selvagem.
É lá, em teu jardim,
onde sou, perdido,
o mais estrangeiro
de todos aqueles
que te recobrem.


Rio, janeiro de 2006

Tuesday, December 05, 2006

Mariposas (fragmento)



Era tão frágil como um passarinho. Olhar ciscando, impreciso, procurando saídas. Respirava sua sina de ninfa e escondia o medo na languidez dos gestos, nas palavras de obscenidade óbvia. Exalava um perfume barato. Os cabelos, duros de tanta tinta, eram de cores improváveis, tom sobre tom de muitas camadas, como as histórias de seu dia-a-dia, que se sucediam rapidamente. Mas eu a via sempre menina, Joana D’Arc a caminho da fogueira. Perdido num turbilhão de dúvidas, não sabia se a devorava ou a salvava de uma vez por todas. Era ela quem decidia, afinal, quando me despia a alma e, assustada como um passarinho, me engolia.

Saturday, December 02, 2006

Legado



(para Soraya)

Quero deixar essas palavras contigo
como um legado de minha vida.
Que te sejam leves como a brisa.
Um toque suave em teu rosto
quando andares na rua de nossos passeios.

Quero deixar essa saudade sutil
guardada em teu peito, sem dor.
Só a carícia das palavras ao vento.
Que ele as leve, soltas, à vontade,
que dancem no ar que respiras.

Quero ficar assim, quase esquecido
de tão dentro de ti que me encontre.
Uma presença branda e poderosa.
Completamente integrada em tua alma
para que eu possa, enfim, ser todo teu.

Rio, março de 2006.

Friday, December 01, 2006

Esquina



Foi ao dobrar a esquina. Uma lufada de vento dos Trópicos, prenúncio de temporal, e ela esbarra em mim com seus olhos perolados. Um susto! O dia vinha limpo, branco, iluminado e quente. Nada que indicasse reencontrar um fantasma ao virar a rua. Mas a cidade guarda suas surpresas. No vazio, sob o eco dos espigões, uma alma penada do passado mal curado, um gatuno que salta sobre a gente de bem como um tigre faminto. E o esbarrão anula as etiquetas que nos permite manter todas distâncias, físicas e simbólicas. Face a face não há fuga possível. A realidade tão longe, quase esquecida, se reinstala, soberana, à nossa frente, em nossa alma. E o corte da ferida volta a sangrar.

mariposas: December 2006