Sunday, November 26, 2006

A propósito de mãos tão angulares



Seus movimentos traça­vam no ar expressões de ângulos exíguos. As mãos eram um espelho preciso daquela alma intrigante. O modo como segurava o ci­garro, enquanto a outra mão apontava para o seu acom­panhante de maneira incisiva, o indicador enfatizando o que dizia, de forma que nem mesmo o tom ameno do seu sorriso conseguia dissipar a gravidade do gesto.

Comparado a ela, ele parecia um Zé Ninguém. Pri­sioneiro de convenções tolas e modas imbecis. Tudo in­di­cava. Do corte de cabelo às velhas certezas extraídas do preconceituoso senso co­mum. Definitivamente não combinavam. O que será que os unia? Que mistério! Até esse momento não houvera um impulso de carinho, as mãos dela guiavam a con­versa contracenando com a debilidade gestual dele. Era óbvia sua soberania. Mas ela não parecia ligar para esses detalhes, sabia-se rainha.

Dividiam um copo de caipirinha, que repousava no centro da mesa de mármore equidistante de ambos. Ape­nas um canudo, repartido com o charme dos romances recém-iniciados. Era impressionante o con­tras­te entre a sensualidade sóbria de suas mãos e a lascívia com que sua boca se dedicava a sugar o fino ca­nudo vermelho, absor­vendo com certa volúpia sua batida de limão. O belo rosto e o corpo esguio eram coadjuvantes de suas mãos.

O bar lotado, rock'n'roll a todo volume, ambiente de azara­ções em meio ao entra-e-sai de jovens ainda com os últimos vestígios de ado­lescência: jeans e ja­que­tas de couro, rabos de cavalo e barbichas grunge, meninas em saias curtas e histerismos pós-modernos... tudo isso não os perturbava em sua mútua dedicação.

Desfrutavam da penumbra conversando entre acordes afiados de guitarra, sempre com as mãos delas deter­minando, afirmando, criando desenhos geométricos no ar enfumaçado. Até mesmo quando re­pou­savam no colo, uma por cima da outra, embaixo da mesa, elas mantinham o tom ativo dentro da passividade mo­mentânea. Criava-se um sus­pense, até que elas emer­giam exatas para concluir seus argumentos.

Essa trama gestual seguiu durante a noite, até que, perto do fim, antes de se levan­ta­rem e deixarem o bar no vazio daquela multidão, sua mão direita, numa velo­cidade estudada, esticou-se e buscou o braço dele enco­lhido. Com esse primeiro sinal de afeto encer­rava-se ali todo o discurso da noite. Só cabia a ele e a nós, pobres espectadores dessa cena, desmembrados de gestos tão magnânimos, am­putados de mãos tão angu­lares, acatar o que quer que fosse que ela quisesse.

Rio, verão de 1993

Saturday, November 25, 2006

Felicidade (para ser musicado)


foto: jonas lund

A felicidade é como Deus
Não se dá a ver facilmente
Pois ninguém agüentaria
Seu insuportável êxtase.
Desvendá-la? Só aos poucos
Na intensidade do possível
Do contrário é perigosa luz
Que vem de todas as funduras.
É fácil virar água escura.

Porém, eu a vi cara a cara
E a consciência de tê-la
Cegou-me para sempre.
Hoje, a lembrança me tortura
Nitidez afiada da saudade
Do dia em que meus dedos
Enlaçaram tua cintura
Sobre o vestido de flores
Num céu de incendiada cores.

E fomos um no momento
Entre dunas e o mar
Depois vimos a tarde morrer
Na proa daquele navio.
A brisa enchia nossos peitos
E meu rosto se escondia
Sob o vento de teus cabelos.
O dia se deitava de vez
Mas não se desfez o instante.

É hoje o que me dilacera
Na quimera da memória.

Rio, outubro de 2006

Sunday, November 19, 2006

A musa dos pés descalços


foto: yves noir

Passou por mim como um arrepio, mas a reconheci no imediato. O ranger interno dos ossos e um presságio em forma de calafrio me diziam: é ela. Os indícios na relva verde estavam lá, apontando para múltiplas direções, todas elas, a mesma. Tudo confirmava sua fugidia presença, mas foram as marcas dos pés descalços que assinaram seu nome na grama. Voltara sabe-se lá de que abismo. O jeito escorregadio, como se não quisesse estar ali. Era o riso de sempre, a mesma alvura de pele, a sina romântica de infortúnios e naufrágios. Musa de sonhos irrealizáveis, tinha o corpo transparente, desenhado por caminhos azuis de veias, cabelos claros ao vento. Esquálida, pálida, lânguida. O sexo, mata fechada, escuro contraste com a pele de leite, guardião de segredos abissais. Mais ilusão do que carne. O coração gelado, silencioso, e a maldade pura das crianças. Mas a expressão da sua alma eram os pés. Ninguém nunca os vira calçados. Estavam sempre deixando digitais em formas de pegadas, construindo constantemente seus labirintos. Fez do andar descalço sua marca e, em cada passo, os vestígios de sua luta para manter a lucidez dos sentidos, o esforço para escapar aos desvarios que abriram fendas em seu peito.

Em outra vida, me perdera com ela. Caminhei ao seu lado, buscando desvendar, ofuscado por um fascínio irracional, a alma desfraldada, o espírito indomável, a meninice que se apegara à pele, o sorriso travesso enquanto ateava fogo ao mundo, em suas revoluções, revoltas e conjurações. Mergulhei em seu universo pela densidade de sua floresta, nunca inteiramente aberta para mim. Era preciso sempre lhe tomar de assalto o reduto, o ventre plano, o púbis tarantular e fincar ali a minha bandeira. Só assim, quando o corpo já não lhe pertencia mais, me entregava seu tesouro isenta da própria volúpia. Forcei-me adentro de sua persona, de seus humores, de seus músculos e deixei em suas funduras os fios poucos de sanidade que me constituíam. Enlouqueci feliz no esquecimento daqueles dias, que se alternavam entre os mais felizes e os mais ferozes da minha vida. Fui picado mil vezes por seu ferrão oculto, ingeri seu veneno mais letal, mas sobrevivi ao mergulho, salvo por meu apego à terra, ao chão firme, à luz quente do sol.

No caminho de volta reencontrei cacos preciosos do que fora antes de ter enquadrado seus olhos no foco impossível. Reconstituí-me protegendo os pedaços que me sobraram. Era agora feito de restos, num mundo sem quimeras ou fantasias. Apenas a densidade crua das coisas e dos seres; a percepção, resignada e plácida, do ciclo da vida. Foi preciso tempo para ver o encantamento dessa outra alegria possível, que, sem fogos de artifícios ou canto de sereias, ardia plena na intensidade do real.

E agora, ela me assombrava novamente, materializando-se ao meu lado. Os pés sempre desnudos e, nos olhos, a velha história, o mesmo engano. Mas, na distância, aprendera. Sabia inclusive de todos os novos vocábulos que pronunciei desde o nosso último abraço. Estudara atentamente meus percalços e vinha preparada para me reconquistar; sua trama, por não ser trama, era das mais poderosas. Mas as cicatrizes ainda me doíam fundo e me mantive enraizado. Amarrei-me, como Ulisses, ao real. Permiti que ela chovesse, derramando-se sobre mim, e esperei que estiasse, no sono calmo e escuro de seus abismos, único lugar onde seu espírito aquietava-se. Mas, enquanto dormia, saí vasculhando o mundo ao meu redor, para depois voltar e afogá-la sob uma montanha de calçados. Estava curado e podia agora deixar meus próprios passos na relva.

Mitológicas afetivas 1



Ela era toda aérea e alongada, feita de uma magreza quase óssea. Talvez por isso mesmo tinha todas as curvas realçadas na escassez de carne. No fundo, era a mesma gostosura que faz os homens encherem a boca na rua ao ver uma mulher boa passar, expelindo saliva, fome e tesão. Mas não se dava a ver assim, a qualquer um. No trivial era invisível, desaparecia na paisagem da cidade, camuflava-se entre os prédios de concreto e, exceto pelos cabelos de princesa, que de vez em quando agitava num gesto decidido, passava pelos leões da rua desapercebida. Para ver seu tesouro era preciso, antes, mergulhar em seu universo, navegar os seus rios de intimidade e conhecer sua história. Só depois de seguir os caminhos de veias azuis sob a pele alva, ultrapassar o denso matagal entrelaçado de seu sexo e percorrer todos os acessos a sua alma, aí sim, revelava-se a languidez secreta de seus gestos mais lascivos e emergia a deusa de esquálida firmeza, arrebatada por algum sonho de amor feliz, desses que só existem nos campos verdes do desejo e que a faziam flutuar etérea e elevada.

Veredas



Minha alma carrega um lado sertão. Esse espírito múltiplo abarca a faceta erma das distâncias sem fim, das veredas tortuosas, dos vales verdejantes, das chapadas ao longo do horizonte infinito, das nuvens alvíssimas sob o céu azul, do silêncio e de todas as três margens do rio.... tudo, tudo na mesma contraposição à cidade, meu lado citadino, meu anonimato, a vida sendo quase sempre um quase em relação ao outro, a intersubjetividade feita de temores e amores. As esquinas, os becos, os carros fumegantes, Copacabana, os botecos nas calçadas, a festa com estranhos e ela, deusa cosmopolita, sacerdotisa de todos os assuntos, fêmea generosa e lânguida, feliz em sua melancolia urbana. Às vezes trago o sertão para o asfalto, às vezes levo as esquinas para as florestas. É esse vaivém que me transforma em deus e me tece percepções sutilíssimas, sobretudo acerca do meu não-ser, do meu não-estar no mundo — esse universo construído arbitrariamente —, da minha condição de quase inexistente, que só respira no limbo entre o sertão e a cidade.

Saturday, November 18, 2006

Date una vuelta en el aire



O Dr. Cornbloom era um ser um todo lunar. Caminhava pela terra a passos firmes, conquanto sempre em espiral. Vivia, por assim dizer, com os pés nas estrelas, assoviando canções que diziam coisas impositivas como: "date una vuelta en el aire". Quem o observasse mais atentamente perceberia uma constelação em suas palavras e aquela luz oblíqua nas idéias. Como de costume nessa estirpe de almas, era atraído por todos os tipos de silêncio, sobretudo o noturno, e em qualquer firmamento mais longínquo aquietava-se de contentamento. De tanto asozinhar-se, era dado como um sujeito taciturno, o que não correspondia de modo algum à realidade dos fatos, ainda que a realidade, fosse qual fosse, era sempre posta em dúvida pelo próprio Dr. Cornbloom em suas explosões silenciosas. Mas nesse caso, tais inferências de fato não tinham a ver com sua personalidade, pois o Dr. Cornbloom vivia lá seus momentos de folias e estripulias. Via a si próprio até mesmo como um boêmio, quiçá um sátiro nos seus melhores momentos, embora sempre permeado por um caráter romântico que com o tempo aderira à sua pele como uma cera protetora. Houve até quem o visse dançando um bolero. E, segundo tais relatos, conduzia sua dama com destreza e sem hesitação, apesar dos olhos afogados pelos enredos das canções de amores perdidos para sempre. Sendo como era, o Dr. Cornbloom fugia sempre que possível de pessoas solares e suas razões iluministas. Esse tipo de gente sempre lhe queimava as ponderações visionárias e o encantamento das incertezas. Estavam sempre a declarar verdades irrefutáveis e ele a lhes lançar dúvidas eternas. De modo que não combinavam e embora não fosse afeito a fugir de uma boa briga, o Dr. Cornbloom os evitava ao máximo, porque além de tudo costumavam ser muito enfadonhos. Ele preferia os ensombreados como ele, e não por identificação, pois embora afirme-se que no escuro todos os gatos sejam pardos, na verdade apresentam personalidades singularíssimas. De modo que nunca se reconhecia em seus pares. E adorava-os por isso. No entanto, nem sempre é possível esquivar-se de meteoros incandescentes, especialmente quando aparecem de surpresa nas brechas do tempo, equidistantes entre o dia e a noite, em formas sinuosas e curvilíneas. E nosso pobre Dr. Cornbloom, em pleno retorno de Saturno, viu-se traspassado pelo olhar moreno de uma ninfa. Num primeiro zás, pensou que enlouquecera, pois o canto de sereia instalou-se em sua cabeça e o silêncio partiu-se estilhaçado. Ela era o fogo, a labareda do dragão, e o Dr. Cornbloom entregou-se a ela, no inteiro, alçando um vôo por céus nunca dantes navegados em insuportável alegria. E à medida que aproximou-se daquele sol, a cera que lhe protegia, no peito, o coração derreteu-se e Cornbloom, não mais doutor de ciência alguma, caiu do espaço e morreu, feliz, de amor.
mariposas: November 2006