A propósito de mãos tão angulares

Seus movimentos traçavam no ar expressões de ângulos exíguos. As mãos eram um espelho preciso daquela alma intrigante. O modo como segurava o cigarro, enquanto a outra mão apontava para o seu acompanhante de maneira incisiva, o indicador enfatizando o que dizia, de forma que nem mesmo o tom ameno do seu sorriso conseguia dissipar a gravidade do gesto.
Comparado a ela, ele parecia um Zé Ninguém. Prisioneiro de convenções tolas e modas imbecis. Tudo indicava. Do corte de cabelo às velhas certezas extraídas do preconceituoso senso comum. Definitivamente não combinavam. O que será que os unia? Que mistério! Até esse momento não houvera um impulso de carinho, as mãos dela guiavam a conversa contracenando com a debilidade gestual dele. Era óbvia sua soberania. Mas ela não parecia ligar para esses detalhes, sabia-se rainha.
Dividiam um copo de caipirinha, que repousava no centro da mesa de mármore equidistante de ambos. Apenas um canudo, repartido com o charme dos romances recém-iniciados. Era impressionante o contraste entre a sensualidade sóbria de suas mãos e a lascívia com que sua boca se dedicava a sugar o fino canudo vermelho, absorvendo com certa volúpia sua batida de limão. O belo rosto e o corpo esguio eram coadjuvantes de suas mãos.
O bar lotado, rock'n'roll a todo volume, ambiente de azarações em meio ao entra-e-sai de jovens ainda com os últimos vestígios de adolescência: jeans e jaquetas de couro, rabos de cavalo e barbichas grunge, meninas em saias curtas e histerismos pós-modernos... tudo isso não os perturbava em sua mútua dedicação.
Desfrutavam da penumbra conversando entre acordes afiados de guitarra, sempre com as mãos delas determinando, afirmando, criando desenhos geométricos no ar enfumaçado. Até mesmo quando repousavam no colo, uma por cima da outra, embaixo da mesa, elas mantinham o tom ativo dentro da passividade momentânea. Criava-se um suspense, até que elas emergiam exatas para concluir seus argumentos.
Essa trama gestual seguiu durante a noite, até que, perto do fim, antes de se levantarem e deixarem o bar no vazio daquela multidão, sua mão direita, numa velocidade estudada, esticou-se e buscou o braço dele encolhido. Com esse primeiro sinal de afeto encerrava-se ali todo o discurso da noite. Só cabia a ele e a nós, pobres espectadores dessa cena, desmembrados de gestos tão magnânimos, amputados de mãos tão angulares, acatar o que quer que fosse que ela quisesse.
Rio, verão de 1993