Sunday, October 19, 2008

No jardim perfumado

Rio, 11.10.2008. E fioi então um dia que você finalmente me levou pela mão a conhecer seu jardim. Um canto tão seu, querida amiga, tão profundamente seu, que só por me mostrar, por me fazer sentir sua relva úmida, respirar seus aromas perfumados, me colocou no centro do seu universo. Não merecia tanta intimidade, mas estava ali, diante da dádiva, o dom, que você, deusa, do alto de sua generosidade me concedia. E mesmo tendo sido um passeio fugidio, no ínterim de tantas coisas, uma brevidade, enfim, marcou-me para sempre. E tornou-se meu refúgio secreto, bem dentro de você, bem dentro de mim. Nós, ali, apenas um. Para sempre. De uma vez por todas.



E agora que tantas estradas, tantos mares e rios, e um céu de tamanho sem fim, se colocam entre nós. Agora, que suas janelas se abrem para outras brisas, mais do que nunca a idéia do seu jardim me acolhe para um cochilo na relva. Capim molhado, sol da manhã. Suor tropical. Você querida amiga, com seus sortilégios sobre meu peito. Fazendo o mundo girar, enquanto pelo mundo gira. E mais uma vez me leva pelas mãos a mundos tão imprecisos, tão desconhecidos, tão misteriosamente atraentes, como aquele que encontrei em teu jardim, quando naquele então você me abriu as portas.



Obrigado, amiga, pelas pétalas que se abrem em mais pétalas, pelos cabelos que recobrem o corpo, pela boca que me engole inteiro. Obrigado, amiga, pelo passeio no jardim perfumado.

Thursday, September 25, 2008

Projeto MaPa no YouTube

Amigos, continuo enrolado no doutorado, mas já estou concluindo. Acho que muito em breve estarei de volta a essas páginas. Enquanto isso, deixo o link de minha apresentação no Projeto Mapa, do Marcelo Magdaleno, que rolou em maio, no Cinemathèque Jam Club. É só acessar o YouTube por aqui.

Friday, August 01, 2008

Doutorado

Amigos, estou na reta final do doutorado. Tenho que entregar minha tese até o fim de agosto e defendê-la até o fim de setembro. Ou seja, estou neste momento totalmente concentrado nessa tarefa. Por isso, minha presença por aqui tem sido esporádica e continuará assim até outubro. Depois, pretendo retonar às Mariposas com assiduidade.

abraços a todos e me desejem sorte!

Wednesday, June 11, 2008

Mariposas (fragmento)



Depois que você se foi, uma saudade leve me invadiu e permaneceu no constante. Talvez um perfume que tenha ficado nas fronhas onde deitaram os seus cabelos chanel, ou nos lençóis que abraçaram suas alvas curvas, cheias de veias azuis. Talvez o silêncio ecoando sem a voz adolescente e rebelde, desafiando quase tudo que se afirmava. Essa ausência é uma dor igualmente suave, que se instala sob a pele por obra da memória afiada, que traz com nitidez os nossos dias e noites de torpor e carícias.

Agora que você desapareceu sem vestígios, para sempre nas funduras do mundo, anda mais do que nunca presente, em cada esquina do meu quarto, em cada sonho que me embala. E nosso encontro, que desde ontem era sem amanhã, que nunca fora de louvor em verso e prosa, se escreve agora, no depois, nessas linhas, em minhas entranhas, como uma ausência esquisita. Uma musa que não se fez no quando.

Naqueles dias vivemos o comum. Nos aninhamos e sorvemos um ao outro, sem planos, sem desejo, só prazer, como nos versos do poeta Manduka. Apenas aquele brincar sem limites, a alegria de descobrir todos os seus segredos. Assim, fui seu herói por aqueles tempos fugidios que poderiam ter sido o que nem imagino no hoje, quando você vem com insistência nas instâncias mais banais da lembrança. E assim, sem alarde, sem explosões apaixonadas, você se instala no definitivo do meu ser como aquela, que, de todas, é a que perdura em mim, no suave, no constante, no real.

Sunday, May 25, 2008

Oceano



Derramou-se a alça do vestido
e à esquerda emergiu o alvo ombro,
presságio de chuva em sua boca.
Os dedos escorreram o ângulo perfeito
e precipitei-me abismo adentro
para sempre afogado em você.
Mas depois estiei um sol de lucidez
e secou-se o que de seu era orvalho.
Escoei quase todo o oceano.
Hoje leva-me, onda sem destino,
uma brisa de saudade
à deriva.

Tuesday, May 20, 2008

Náufraga



A última vez que te vi
O verbo ardeu, lamentoso
Trazias pedras nas palavras
Eras o desencontro de sempre
Vomitando as dores mesmas
Com outras sombrias cores.
Mas agora, fui eu quem faltou
E a mágica desaconteceu
Teu encantamento não mais
Escondia os olhos mortos
Foi fitar a íris opaca, inerte
E saber que, desde o início,
O fim viera antes do começo.
Desfez-se o sortilégio e te vi
Na luz dos teus naufrágios
Que, agora, eram só teus.
E o beijo que tanto negaras
Hoje já não alcanças mais.

Sunday, May 18, 2008

Mariposas no Projeto Mapa



A participação no evento do Projeto Mapa foi uma experiência das mais instrutivas para mim, apesar do torturante nervosismo que a coisa toda provocou. Subir ao palco e ler fragmentos de um texto em prosa de teor intimista me parecia um exercício fadado ao infortúnio. Some-se a isso minha dicção balbuciante, a leitura no palco com pouca luz e outros fantasmas que rondaram todo o processo até a passagem de som.

Mas, ao contrário das projeções mais sombrias, o evento foi ótimo e a na hora do pega-pra-capar, uma estranha calma me invadiu e li com ritmo, sem tropeços e até mesmo com alguma intensidade. Passado o susto, a sensação foi boa, sobretudo porque não deixou de ser uma espécie de teste em relação à forma como os fragmentos das Mariposas chegaria aos ouvidos do público. O texto íntimo finalmente saiu do ninho e foi reapropriado pela audiência, que fez dele outros sentidos.

Também foi um aprendizado. Ler prosa exige uma mexida no texto, para deixá-lo, digamos, mais verbalizável. É algo que o Alexei Bueno disse sobre impropriedade da poesia como arte cênica (do que discordo, embora concorde com muitas ponderações do poeta). A poesia se presta mais às declamações. Os versos, normalmente, já demarcam o ritmo da leitura em voz alta e, dependendo das imagens que cria, facilita o lado cênico da apresentação. O Chacal, por exemplo, tem um jeito de mover o corpo, soltando as palavras das entranhas. Ele se retorce e cospe literalmente o verbo.

O texto de prosa é uma outra história. As imagens são desconexas em termos de ritmo, rima e imagens. O texto lido em voz alta, declamado com alguma presença cênica, performática, impõe certas condições para manter os ouvidos da audiência ligados. O texto de prosa permite muito facilmente que o ouvinte se disperse, converse, peça um chope e perca o fio da meada. Mas, no caso do Projeto Mapa, há um grande apoio da música, que não entra como fundo, mas como co-protagonista. A leitura funciona como um solo instrumental verbalizado. Em vez da guitarra ou do sax, entra o texto, com o tema da música ao fundo. Isso tudo dá um relevo ao texto e, aí, até mesmo a prosa cai bem.

No meu caso, a leitura dos fragmentos das Mariposas, uma coisa intimista com certas tensões sensuais, casou muito bem com o tema do Wayne Shorter Footprints, uma balada valseada das melhores. A leitura entrou como mais um instrumento solando. Fizemos o tema duas vezes, eu li a primeira parte, o guitarrista solou, eu li a segunda e a banda fez o tema mais duas vezes para fechar. No fim, fiquei com vontade de fazer mais, exatamente como o Marcelo Magdaleno, idealizador do projeto, previu.

Flávio Izhaki também leu prosa e com um desafio maior, porque trouxe fragmentos de um romance, ou seja partes de um enredo maior, ao passo que minhas Mariposas se prestam mais à fragmentação, já que são memórias recortadas. Porém, Flávio atravessou bem o incêndio. Pensando retrospectivamente, acho que o Marcelo Moutinho foi o que melhor costurou essa integração de prosa e música.

O Otto fechou a noite, colocando o evento nas alturas. Inspirado pelas leituras anteriores, leu pela primeira vez alguns poemas seus de boa cepa.

Tudo foi gravado em vídeo e não sei como saiu e nem quando ficará disponível. Maiores informações sobre o evento podem ser encontradas no site do Projeto Mapa (veja o link ao lado).

Além do show, foi ótimo reencontrar, após mais de 20 anos, Carmen Molinaro, uma amiga do século XII.



Abaixo, os dois fragmentos das Mariposas, exatamente como foram lidos:

Tema do Footprints, duas vezes e em seguida o primeiro fragmento:

Ela tem curvas. Todas elas têm. Mas sua textura muda e traz odores sutis, suores suaves, que a constragem e me embalam. Do centro de suas pernas saem mariposas. Sua floresta esconde um sol de úmidos raios. Muitas coisas acontecem ali. Misteriosas, emaranhadas, espessas, escorregadias. Exploro bem de perto seu território, com olhos de míope, farejando, tateando com todos os sentidos. Durante séculos, atravesso seus vales, mergulho em seu lago e me enrolo em sua pele transparente. Sorvo seus líquidos, mordo sua carne, bebo seu sangue e deixo sinais nas curvas de suas coxas. Cravo minha marca com caninos afiados. Depois, me cubro com seus cabelos e me deixo ficar, eterno vigilante de minha conquista. Está sempre de passagem, pronta para fugir. Mas às vezes se distrai e me fecunda de alegrias espantosas, até que o amanhecer a devolva aos abismos.

Solo de guitarra e o segundo texto:

Era frágil como um passarinho. Olhar ciscando, impreciso, procurando saidas. Respirava sua sina de ninfa e escondia o medo na languidez dos gestos, nas palavras de obscenidade óbvia. Exalava um perfume barato. Os cabelos, duros de tanta tinta, eram cores improváveis, tom sobre tom de muitas camadas, como as histórias de seu dia-a-dia, que se sucediam rapidamente. Mas eu a via sempre menina. Perdido num turbilhão de dúvidas, não sabia se a devorava ou a salvava de uma vez por todas. Era ela quem decidia, afinal, quando me despia a alma e , assustada como um passarinho, me engolia.

Sunday, May 11, 2008

Todo



Seu corpo
Solto assim no espaço
Sem o calor do sangue,
Veias e ossos

Imaterial, imolecular

Vestígio apenas da história
Que ficou condensada
Na memória de quem
Sobreviveu no tempo.

Alma ampla
Espalhada agora no vazio
No algo mais

Incompreensível, integral

Bem além de
Qualquer palavra
Bem mais que
Qualquer idéia.

Rio, 11 de maio de 2008.
(para Manduka)

Tuesday, May 06, 2008

Tato



Insinua-se sob os panos
Minha mão adentro
O vinho nos ajuda
Nos encobre o silêncio

Forço a elástica fibra
E, com os dedos cegos,
Na ponta, a mata sinto
Teu pudor, enfim, venço

Estendo meus domínios
Rapto, assim, a rainha
O calor orvalha o gesto
Para sempre me abismo

E antes que aflore
Da flora a vergonha
E o medo detenha o pulso
Tateio, leve, o lago

Sem ar, suplicas um ai
Que não diz sim ou não
Mas, no fim, te abres
Para meu mergulho

E quando penso que vou
Sou eu quem preso vira
Abres os olhos em mim
E, faminta, me engoles

Rio, 25 de abril de 2008.

Fama



(para Manduka)

A morte prematura
Endeusa o tipo.
E como saíste cedo
Esquecido, maldito
Tens tudo para
Dar luz ao mito.

Mas uma fama,
Que assim se deita
Desarruma a cama
Atrasa a colheita.
Morte e saudade
Arrebatam o homem
Santificam o nome.

Porém, és mais
Que páginas, jornais
Luz que acende
Sol que arde.
Nunca dependerás
De alarde.


Rio, 26 de abril de 2008.

Sunday, May 04, 2008

Plúmbeo



Tens o coração romântico e puro
Evocas o passado em duro pranto
Saudade do que não fostes
Lírica voz que lamenta amores
Rumor de sonhos incompletos

Mas quando de ti acerca
De carne e osso verdadeiro
O beijo que se rouba à lua
Nua, te escondes assustada
E o peito plúmbeo vira gelo
Rubor de vergonhas indizíveis

Rio, 25 de abril de 2008.

Zás



Ao girar, presto,
Sem querer
O gesto flagrei
Vi que, distraída,
Me espiava.
Foi um segundo,
um zás no mundo,
Eternidade.
Antes que vestisse a pose
E, envergonhada,
Guardasse os olhos
Voltasse aos seus.
Desfeito o ar
Descompreendi a vida.
Mas, na multidão,
Seguimos cúmplices
Do breve desvario,
Testemunhas do frio
Que queimou o ventre.

Rio, 26 de abril de 2008
(entre poetas)

Wednesday, January 02, 2008

Maravilhosamente insuportável



Acho que foi na Idade Média, já não me lembro bem. Naquela época, eu e ela estávamos sempre juntos, embora houvesse muitas galáxias entre nós. Eu, como sempre, perdidamente apaixonado. Ela, interessada nas amigas. No entanto, talvez até pelos percalços que sua ousadia afetiva lhe impunha numa sociedade pouco afeita a esse tipo de conjunções carnais, sempre procurava seduzir a nós, pobres coitados do sexo oposto. Éramos o alimento perfeito de suas incertezas. Mas não nos oferecia nada além de uma promessa do que poderia vir a ser. Sua arte era nos fazer crer que se entregaria.

Atributos não lhe faltavam para desempenhar com maestria o rito sedutor. Além da beleza misteriosamente mediterrânea, que marcava seu rosto com expressões singulares, possuía curvas inquestionáveis. Nunca usava sutiã, justamente para ressaltar o desdém que nutria pelos princípios da Lei da Gravidade. E eu me via completamente hipnotizado, quando entrava na órbita de seu abraço. Ela era sempre um quase. E isso me enlouquecia. Sentia-me completamente enredado em sua teia.



Um dia, pura conspiração cósmica, estávamos no meu quarto de espírito adolescente discutindo um trabalho que realizávamos juntos. Curiosa, ela vasculhou a estante de livros e encontrou alguns catecismos de Zéfiro, aqueles quadrinhos eróticos mimeografados e mal desenhados, vendidos clandestinamente nas bancas do Rio, naquele século XVI. Aliás, é preciso fazer justiça e dizer que Zéfiro fez parte da formação sexual de várias gerações, inclusive a minha, antes que o universo pornográfico se transformasse em um mercado lucrativo e padronizado, com suas fotos ginecológicas e falta de imaginação. Nas histórias de Zéfiro, ao contrário, o erotismo estava sobretudo nas fantasias, repletas das safadezas e perversões que alimentam o universo erótico do brasileiro.



Pega de surpresa, minha amiga sentou-se na cama, profundamente entretida naquelas tramas picantes. Ajeitei-me ao seu lado, deveras surpreso pela maneira franca como ela demonstrava sua excitação e alegria com aquelas revistinhas de sacanagem, e fui comentando as histórias, que já conhecia de cor, o que me permitia ressaltar detalhes sórdidos que só aumentavam o nosso calor. E deu-se a magia. Ou terá sido bruxaria? Não lembro mais exatamente como começou, mas recordo-me bem de sua camiseta levantada e especialmente da textura daqueles seios protuberantes, prova inquestionável da existência divina. Só por tê-los beijado e tocado, já realizara parte de um grande sonho de felicidade. Já quase poderia morrer em paz.



O que tornava aquela sensação insuportavelmente prazerosa era a sua total improbabilidade, o que confirma o fato de que o orgasmo é, antes de tudo, uma construção simbólica. Minhas sensações eram aguçadas pela emoção de ter-me consciente de que este momento fugidio, em que minha língua e seu mamilo esquerdo se entregavam um ao outro, nunca mais se repetiria. Hoje, certamente algum cientista americano em busca do Nobel dirá que se trata de um estímulo no lóbulo frontal ou talvez localizado em algum ponto do cerebelo, não sei bem. Prefiro o bom e velho Freud, ou, antes ainda, o perverso Zéfiro, a quem tenho profunda dívida de gratidão.



Saltei sobre minha amiga como um tigre que espreita a gazela bebendo água distraída na floresta. Sabia que qualquer gesto precipitado ou vagaroso demais quebraria o sortilégio. Avançava com ternura e firmeza. Ela nunca usara saia, portanto em meio àquela sofreguidão intensa, procurei desajeitadamente abrir os seis botões de seu jeans que me separavam do paraíso. Nossos corpos pegavam fogo. Ela arfava e eu era sacudido por sismos internos de magnitude 9 na escala Richter. Eu era um vulcão em plena atividade. Minhas pernas tremiam como varas de bambu.



Ela, afinal, se entregara. Mas, quando faltavam apenas dois botões para a felicidade completa, uma batida na porta do quarto devolveu-lhe num átimo a consciência cristalina de que algo impróprio à nua natureza ocorria e a tal perversão não poderia sucumbir sem pôr em risco a intrincada estrutura de seu psiquismo. Toda sua alma desabaria e não haveria mais volta. Em outras palavras, foi um balde de água fria. Tivemos que nos recompor rapidamente e, ao abrir a porta, dei com minha mãe que fizera duas limonadas suíças para amenizar o calor. “Fiz um suquinho pra vocês”, disse ela sorridente e maternal. E foi ali, naquele instante, que me inteirei da necessidade de morar sozinho.



Quanto a minha amiga, nunca mais abriu a guarda.

Wednesday, November 07, 2007

Abraçando Joana



Meus níveis de testosterona entraram em ebulição ontem, depois que me deparei, cara a cara, com a bela Joana. Havia alguns séculos que não punha os meus olhos nos seus, amendoados e preguiçosos, que ela escondia por trás dos desnecessários óculos escuros... Ah! A vaidade feminina! Como sempre fazemos quando nos encontramos, demos um abraço de corpo inteiro, sem restrições nem pudores. Ficamos imóveis uma eternidade, enquanto nossos corpos se encaixavam lentamente, como se fossem duas metades que estavam perdidas no universo, à deriva.

No meio do mercado alheio ao nosso encontro, aderi ao seu ventre, graças ao esforço que ela fazia para se colocar nas pontas dos pés e me alcançar os olhos; seus seios esmagados pelo meu peito apertado de emoção. Senti aquela maciez colada em mim com profunda emoção e, mais atrás, o coração num compasso acelerado. Dei um cheiro em seus cabelos e pescoço com os olhos fechados, saboreando o encontro daquela mulher tão brejeira e lânguida. Tão tropical e mediterrânea. Por fim, um beijo em cada bochecha, estalado e úmido. Inteiro.



Foi um abraço que se situa na fronteira entre a cordialidade afetuosa e a intenção sensual, alimentada mais pelo que nos promete o futuro do que o passado que compartilhamos. Sempre nos encontramos com crescente afeto, que se funda numa promessa ainda não cumprida de uma experiência amorosa completa. E não me refiro apenas a sexo. Sexo também, mas não só. Por isso, nosso abraço traz essa marca difícil de decifrar. É um encontro cheio de entrelinhas, subjetivo e sensorial.

Depois conversamos, rosto e rosto na distância de nossa respiração, território de nosso afeto casual. Sempre fomos assim, de nos abraçarmos como amantes e depois deixarmos as coisas nas reticências, mas nunca na interrogação. “Te ligo!”, mentimos mutuamente. Mas é justamente a falsa promessa que evidencia da forma mais concreta o nosso amor eterno. Não sei que força poderosa é essa que nos atrai. Talvez sejamos um vinho de boa cepa, velho e frutuoso, que requer o tempo do respiro para ser apreciado propriamente. Por isso esperamos, à espreita, nas esquinas da cidade que compartilhamos, o momento de sorvermos um ao outro.

Tuesday, October 30, 2007

Sonho



Desnuda, vês o mundo lá fora pela janela
enquanto, sem respirar, de ti me aproximo.
Te arrepias toda ao tremor do susto
quando ponho em tua nuca meu suspiro.
É nesse instante que te abraço, também nu,
o abraço que na vigília é tão improvável.
Mas, neste outro universo, tudo é possível
até mesmo o meu amor proibido por ti, amiga.
E quando percebes a rigidez que se avoluma
encaixas o centro de teu universo em mim.
Tornas o rosto na penumbra daquele quarto
e me dizes, a boca fechada, que me amas igual.
E a impropriedade de nossos atos se desfaz
em ondas de uma plenitude rara de satisfação
e luto com todas as forças contra a luz a manhã.

Rio, fevereiro de 2006

Sunday, December 24, 2006

Ciclo



Com preguiça, enrolo os dedos
nos cachinhos dos teus pelos
e deixo a tarde me atravessar.
No suor de nosso abraço
me deito ao sonho e me levas
no sortilégio de teu sorriso.
Chega o escuro e, no calor,
apuro, com cuidado, os sentidos,
atento ao tremor de tua pele.
Noite adentro, plena madrugada,
escorro no fundo do teu ventre,
brasa acesa do desejo.
E quando o dia, afinal, explode
num verão de cores quentes
eu, com ele, renasço suave
de morte ardente em teus braços.


Rio, dezembro de 2006

Friday, December 22, 2006

Mariposas (fragmento)



Pensei que fossem seus olhos. Mas antes os gestos, ou mais antes ainda um jeito de estar ali, comigo, no mundo. Tinha uma risada que calava as histéricas. Sua loucura era assim: uma doçura pronta a desatar temporais. Quase sempre furacões enfurecidos. Como suas explosões, ela era um a-qualquer-momento, um prestes-a-acontecer. Agarrou-se a mim com unhas e dentes, num salto de tigresa, e extraiu todas as minhas seivas. Amava-me desesperadamente, a um triz de me matar. Em seus delírios de perdas, adormecia comigo com uma mão em meus cabelos e outra em um punhal. Era para que não fugisse, me avisava. Nos desencontrávamos o tempo todo e era um deus-nos-acuda. Mas nos dias em que serenava, éramos felizes sangue e carne. Não tinha a sutileza das mariposas, era toda felina. Em vez do bater de asas frenético, uma lânguida preguiça, quase invertebrada, pela qual o tempo escorria perdido. Não registrava as cores da mesma forma e era preciso ser um leão para estar com ela e sobreviver. Era louca mas não era de se atirar ao mar. Sua demência era afiada, guilhotina a decepar cabeças. Preferia os surtos de fúria. Trovoava, relampejava e depois estiava. Quieta, adormecia. Sua energia era inesgotável e era preciso dobrá-la, vira-la, agarrá-la em sua entrega para que não destruísse tudo ao redor quando brincávamos de amor. Um dia simplesmente se cansou de mim e me poupou. Hoje, quando os trovões ecoam no horizonte, a percebo imóvel na floresta, onça à espreita, faminta.

Sunday, December 17, 2006

Chuva



Chove, chove, chove
torrencialmente o dia.
Meu barco segue à deriva
no abismo da memória.
Nas profundas encontro
da tristeza a cara cinza.
Ela tem os teus olhos,
minha menina encantada:
o mesmo brilho opaco
que só na distância noto.

A tua voz lamentosa,
espelho do que não fui,
ainda ressoa à cabeça.
E meus ossos, aos poucos,
soltam-se das carnes,
desapego-me de meu corpo
à espera, longa espera,
de que a morte me espalhe,
em plâncton transformado,
no espelho desse lago.

Rio, 12 de novembro de 2006

Saturday, December 09, 2006

Fera


Manipulação sobre foto de Yves Noir


Tem dias em que, cervejado e destemido,
atravesso as brumas que camuflam,
sob as estrelas, a cidade de monóxido.
E, embora suas sombras me protejam,
nesses momentos de sangue e álcool
me exponho ao olhar selvagem da felina
que me espreita de becos e esquinas.
Consciente da precisão de seu assalto
deixo o vento me delatar a seu olfato.
Espero seu ataque de unhas e dentes,
que me engula com todas as suas bocas,
que me traga morte violenta e ardente
e me transforme em cinzas de um instante,
mas que me deixe intacta a idéia de coração.


Rio, outubro de 2005

Thursday, December 07, 2006

Caixinha de sonhos



Te evito na razão,
porém a idéia do
interdito é em vão.
Todo meu esforço
para conter pulsões
é o que, no fim, abre
de uma vez por todas
a caixinha de sonhos.
Indomáveis, partem
para um outro azul
do querer profundo.
E te descubro ali,
lânguida ferida
no ventre selvagem.
É lá, em teu jardim,
onde sou, perdido,
o mais estrangeiro
de todos aqueles
que te recobrem.


Rio, janeiro de 2006

Tuesday, December 05, 2006

Mariposas (fragmento)



Era tão frágil como um passarinho. Olhar ciscando, impreciso, procurando saídas. Respirava sua sina de ninfa e escondia o medo na languidez dos gestos, nas palavras de obscenidade óbvia. Exalava um perfume barato. Os cabelos, duros de tanta tinta, eram de cores improváveis, tom sobre tom de muitas camadas, como as histórias de seu dia-a-dia, que se sucediam rapidamente. Mas eu a via sempre menina, Joana D’Arc a caminho da fogueira. Perdido num turbilhão de dúvidas, não sabia se a devorava ou a salvava de uma vez por todas. Era ela quem decidia, afinal, quando me despia a alma e, assustada como um passarinho, me engolia.

Saturday, December 02, 2006

Legado



(para Soraya)

Quero deixar essas palavras contigo
como um legado de minha vida.
Que te sejam leves como a brisa.
Um toque suave em teu rosto
quando andares na rua de nossos passeios.

Quero deixar essa saudade sutil
guardada em teu peito, sem dor.
Só a carícia das palavras ao vento.
Que ele as leve, soltas, à vontade,
que dancem no ar que respiras.

Quero ficar assim, quase esquecido
de tão dentro de ti que me encontre.
Uma presença branda e poderosa.
Completamente integrada em tua alma
para que eu possa, enfim, ser todo teu.

Rio, março de 2006.

Friday, December 01, 2006

Esquina



Foi ao dobrar a esquina. Uma lufada de vento dos Trópicos, prenúncio de temporal, e ela esbarra em mim com seus olhos perolados. Um susto! O dia vinha limpo, branco, iluminado e quente. Nada que indicasse reencontrar um fantasma ao virar a rua. Mas a cidade guarda suas surpresas. No vazio, sob o eco dos espigões, uma alma penada do passado mal curado, um gatuno que salta sobre a gente de bem como um tigre faminto. E o esbarrão anula as etiquetas que nos permite manter todas distâncias, físicas e simbólicas. Face a face não há fuga possível. A realidade tão longe, quase esquecida, se reinstala, soberana, à nossa frente, em nossa alma. E o corte da ferida volta a sangrar.

Sunday, November 26, 2006

A propósito de mãos tão angulares



Seus movimentos traça­vam no ar expressões de ângulos exíguos. As mãos eram um espelho preciso daquela alma intrigante. O modo como segurava o ci­garro, enquanto a outra mão apontava para o seu acom­panhante de maneira incisiva, o indicador enfatizando o que dizia, de forma que nem mesmo o tom ameno do seu sorriso conseguia dissipar a gravidade do gesto.

Comparado a ela, ele parecia um Zé Ninguém. Pri­sioneiro de convenções tolas e modas imbecis. Tudo in­di­cava. Do corte de cabelo às velhas certezas extraídas do preconceituoso senso co­mum. Definitivamente não combinavam. O que será que os unia? Que mistério! Até esse momento não houvera um impulso de carinho, as mãos dela guiavam a con­versa contracenando com a debilidade gestual dele. Era óbvia sua soberania. Mas ela não parecia ligar para esses detalhes, sabia-se rainha.

Dividiam um copo de caipirinha, que repousava no centro da mesa de mármore equidistante de ambos. Ape­nas um canudo, repartido com o charme dos romances recém-iniciados. Era impressionante o con­tras­te entre a sensualidade sóbria de suas mãos e a lascívia com que sua boca se dedicava a sugar o fino ca­nudo vermelho, absor­vendo com certa volúpia sua batida de limão. O belo rosto e o corpo esguio eram coadjuvantes de suas mãos.

O bar lotado, rock'n'roll a todo volume, ambiente de azara­ções em meio ao entra-e-sai de jovens ainda com os últimos vestígios de ado­lescência: jeans e ja­que­tas de couro, rabos de cavalo e barbichas grunge, meninas em saias curtas e histerismos pós-modernos... tudo isso não os perturbava em sua mútua dedicação.

Desfrutavam da penumbra conversando entre acordes afiados de guitarra, sempre com as mãos delas deter­minando, afirmando, criando desenhos geométricos no ar enfumaçado. Até mesmo quando re­pou­savam no colo, uma por cima da outra, embaixo da mesa, elas mantinham o tom ativo dentro da passividade mo­mentânea. Criava-se um sus­pense, até que elas emer­giam exatas para concluir seus argumentos.

Essa trama gestual seguiu durante a noite, até que, perto do fim, antes de se levan­ta­rem e deixarem o bar no vazio daquela multidão, sua mão direita, numa velo­cidade estudada, esticou-se e buscou o braço dele enco­lhido. Com esse primeiro sinal de afeto encer­rava-se ali todo o discurso da noite. Só cabia a ele e a nós, pobres espectadores dessa cena, desmembrados de gestos tão magnânimos, am­putados de mãos tão angu­lares, acatar o que quer que fosse que ela quisesse.

Rio, verão de 1993

Saturday, November 25, 2006

Felicidade (para ser musicado)


foto: jonas lund

A felicidade é como Deus
Não se dá a ver facilmente
Pois ninguém agüentaria
Seu insuportável êxtase.
Desvendá-la? Só aos poucos
Na intensidade do possível
Do contrário é perigosa luz
Que vem de todas as funduras.
É fácil virar água escura.

Porém, eu a vi cara a cara
E a consciência de tê-la
Cegou-me para sempre.
Hoje, a lembrança me tortura
Nitidez afiada da saudade
Do dia em que meus dedos
Enlaçaram tua cintura
Sobre o vestido de flores
Num céu de incendiada cores.

E fomos um no momento
Entre dunas e o mar
Depois vimos a tarde morrer
Na proa daquele navio.
A brisa enchia nossos peitos
E meu rosto se escondia
Sob o vento de teus cabelos.
O dia se deitava de vez
Mas não se desfez o instante.

É hoje o que me dilacera
Na quimera da memória.

Rio, outubro de 2006

Sunday, November 19, 2006

A musa dos pés descalços


foto: yves noir

Passou por mim como um arrepio, mas a reconheci no imediato. O ranger interno dos ossos e um presságio em forma de calafrio me diziam: é ela. Os indícios na relva verde estavam lá, apontando para múltiplas direções, todas elas, a mesma. Tudo confirmava sua fugidia presença, mas foram as marcas dos pés descalços que assinaram seu nome na grama. Voltara sabe-se lá de que abismo. O jeito escorregadio, como se não quisesse estar ali. Era o riso de sempre, a mesma alvura de pele, a sina romântica de infortúnios e naufrágios. Musa de sonhos irrealizáveis, tinha o corpo transparente, desenhado por caminhos azuis de veias, cabelos claros ao vento. Esquálida, pálida, lânguida. O sexo, mata fechada, escuro contraste com a pele de leite, guardião de segredos abissais. Mais ilusão do que carne. O coração gelado, silencioso, e a maldade pura das crianças. Mas a expressão da sua alma eram os pés. Ninguém nunca os vira calçados. Estavam sempre deixando digitais em formas de pegadas, construindo constantemente seus labirintos. Fez do andar descalço sua marca e, em cada passo, os vestígios de sua luta para manter a lucidez dos sentidos, o esforço para escapar aos desvarios que abriram fendas em seu peito.

Em outra vida, me perdera com ela. Caminhei ao seu lado, buscando desvendar, ofuscado por um fascínio irracional, a alma desfraldada, o espírito indomável, a meninice que se apegara à pele, o sorriso travesso enquanto ateava fogo ao mundo, em suas revoluções, revoltas e conjurações. Mergulhei em seu universo pela densidade de sua floresta, nunca inteiramente aberta para mim. Era preciso sempre lhe tomar de assalto o reduto, o ventre plano, o púbis tarantular e fincar ali a minha bandeira. Só assim, quando o corpo já não lhe pertencia mais, me entregava seu tesouro isenta da própria volúpia. Forcei-me adentro de sua persona, de seus humores, de seus músculos e deixei em suas funduras os fios poucos de sanidade que me constituíam. Enlouqueci feliz no esquecimento daqueles dias, que se alternavam entre os mais felizes e os mais ferozes da minha vida. Fui picado mil vezes por seu ferrão oculto, ingeri seu veneno mais letal, mas sobrevivi ao mergulho, salvo por meu apego à terra, ao chão firme, à luz quente do sol.

No caminho de volta reencontrei cacos preciosos do que fora antes de ter enquadrado seus olhos no foco impossível. Reconstituí-me protegendo os pedaços que me sobraram. Era agora feito de restos, num mundo sem quimeras ou fantasias. Apenas a densidade crua das coisas e dos seres; a percepção, resignada e plácida, do ciclo da vida. Foi preciso tempo para ver o encantamento dessa outra alegria possível, que, sem fogos de artifícios ou canto de sereias, ardia plena na intensidade do real.

E agora, ela me assombrava novamente, materializando-se ao meu lado. Os pés sempre desnudos e, nos olhos, a velha história, o mesmo engano. Mas, na distância, aprendera. Sabia inclusive de todos os novos vocábulos que pronunciei desde o nosso último abraço. Estudara atentamente meus percalços e vinha preparada para me reconquistar; sua trama, por não ser trama, era das mais poderosas. Mas as cicatrizes ainda me doíam fundo e me mantive enraizado. Amarrei-me, como Ulisses, ao real. Permiti que ela chovesse, derramando-se sobre mim, e esperei que estiasse, no sono calmo e escuro de seus abismos, único lugar onde seu espírito aquietava-se. Mas, enquanto dormia, saí vasculhando o mundo ao meu redor, para depois voltar e afogá-la sob uma montanha de calçados. Estava curado e podia agora deixar meus próprios passos na relva.

Mitológicas afetivas 1



Ela era toda aérea e alongada, feita de uma magreza quase óssea. Talvez por isso mesmo tinha todas as curvas realçadas na escassez de carne. No fundo, era a mesma gostosura que faz os homens encherem a boca na rua ao ver uma mulher boa passar, expelindo saliva, fome e tesão. Mas não se dava a ver assim, a qualquer um. No trivial era invisível, desaparecia na paisagem da cidade, camuflava-se entre os prédios de concreto e, exceto pelos cabelos de princesa, que de vez em quando agitava num gesto decidido, passava pelos leões da rua desapercebida. Para ver seu tesouro era preciso, antes, mergulhar em seu universo, navegar os seus rios de intimidade e conhecer sua história. Só depois de seguir os caminhos de veias azuis sob a pele alva, ultrapassar o denso matagal entrelaçado de seu sexo e percorrer todos os acessos a sua alma, aí sim, revelava-se a languidez secreta de seus gestos mais lascivos e emergia a deusa de esquálida firmeza, arrebatada por algum sonho de amor feliz, desses que só existem nos campos verdes do desejo e que a faziam flutuar etérea e elevada.

Veredas



Minha alma carrega um lado sertão. Esse espírito múltiplo abarca a faceta erma das distâncias sem fim, das veredas tortuosas, dos vales verdejantes, das chapadas ao longo do horizonte infinito, das nuvens alvíssimas sob o céu azul, do silêncio e de todas as três margens do rio.... tudo, tudo na mesma contraposição à cidade, meu lado citadino, meu anonimato, a vida sendo quase sempre um quase em relação ao outro, a intersubjetividade feita de temores e amores. As esquinas, os becos, os carros fumegantes, Copacabana, os botecos nas calçadas, a festa com estranhos e ela, deusa cosmopolita, sacerdotisa de todos os assuntos, fêmea generosa e lânguida, feliz em sua melancolia urbana. Às vezes trago o sertão para o asfalto, às vezes levo as esquinas para as florestas. É esse vaivém que me transforma em deus e me tece percepções sutilíssimas, sobretudo acerca do meu não-ser, do meu não-estar no mundo — esse universo construído arbitrariamente —, da minha condição de quase inexistente, que só respira no limbo entre o sertão e a cidade.

Saturday, November 18, 2006

Date una vuelta en el aire



O Dr. Cornbloom era um ser um todo lunar. Caminhava pela terra a passos firmes, conquanto sempre em espiral. Vivia, por assim dizer, com os pés nas estrelas, assoviando canções que diziam coisas impositivas como: "date una vuelta en el aire". Quem o observasse mais atentamente perceberia uma constelação em suas palavras e aquela luz oblíqua nas idéias. Como de costume nessa estirpe de almas, era atraído por todos os tipos de silêncio, sobretudo o noturno, e em qualquer firmamento mais longínquo aquietava-se de contentamento. De tanto asozinhar-se, era dado como um sujeito taciturno, o que não correspondia de modo algum à realidade dos fatos, ainda que a realidade, fosse qual fosse, era sempre posta em dúvida pelo próprio Dr. Cornbloom em suas explosões silenciosas. Mas nesse caso, tais inferências de fato não tinham a ver com sua personalidade, pois o Dr. Cornbloom vivia lá seus momentos de folias e estripulias. Via a si próprio até mesmo como um boêmio, quiçá um sátiro nos seus melhores momentos, embora sempre permeado por um caráter romântico que com o tempo aderira à sua pele como uma cera protetora. Houve até quem o visse dançando um bolero. E, segundo tais relatos, conduzia sua dama com destreza e sem hesitação, apesar dos olhos afogados pelos enredos das canções de amores perdidos para sempre. Sendo como era, o Dr. Cornbloom fugia sempre que possível de pessoas solares e suas razões iluministas. Esse tipo de gente sempre lhe queimava as ponderações visionárias e o encantamento das incertezas. Estavam sempre a declarar verdades irrefutáveis e ele a lhes lançar dúvidas eternas. De modo que não combinavam e embora não fosse afeito a fugir de uma boa briga, o Dr. Cornbloom os evitava ao máximo, porque além de tudo costumavam ser muito enfadonhos. Ele preferia os ensombreados como ele, e não por identificação, pois embora afirme-se que no escuro todos os gatos sejam pardos, na verdade apresentam personalidades singularíssimas. De modo que nunca se reconhecia em seus pares. E adorava-os por isso. No entanto, nem sempre é possível esquivar-se de meteoros incandescentes, especialmente quando aparecem de surpresa nas brechas do tempo, equidistantes entre o dia e a noite, em formas sinuosas e curvilíneas. E nosso pobre Dr. Cornbloom, em pleno retorno de Saturno, viu-se traspassado pelo olhar moreno de uma ninfa. Num primeiro zás, pensou que enlouquecera, pois o canto de sereia instalou-se em sua cabeça e o silêncio partiu-se estilhaçado. Ela era o fogo, a labareda do dragão, e o Dr. Cornbloom entregou-se a ela, no inteiro, alçando um vôo por céus nunca dantes navegados em insuportável alegria. E à medida que aproximou-se daquele sol, a cera que lhe protegia, no peito, o coração derreteu-se e Cornbloom, não mais doutor de ciência alguma, caiu do espaço e morreu, feliz, de amor.
mariposas